(Evangelho – Mt 22,34-40)

Amarás o Senhor teu Deus, e ao
teu próximo como a ti mesmo.

Naquele tempo:
34 Os fariseus ouviram dizer que Jesus
tinha feito calar os saduceus.
Então eles se reuniram em grupo,
35 e um deles perguntou a Jesus, para experimentá-lo:
36 ‘Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?’
37 Jesus respondeu: ‘`Amarás o Senhor teu Deus
de todo o teu coração, de toda a tua alma,
e de todo o teu entendimento!’
38 Esse é o maior e o primeiro mandamento.
39 O segundo é semelhante a esse:
`Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’.
40 Toda a Lei e os profetas
dependem desses dois mandamentos.

                                             Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

Mais uma vez os opositores de Jesus (os fariseus) se reúnem para pô-lo à prova (grego peiradzo: tentar). Como nós sabemos, os doutores da Lei dedicavam grande parte da sua vida ao estudo dos Mandamentos, e chegavam a elencar 613 mandamentos (365 proibitivos, 248 positivos). Para eles, uma das questões fundamentais era saber a ordem hierárquica desses mandamentos, ou seja, qual o mais importante dentre eles. Portanto, uma das prerrogativas para reconhecer a autoridade de um mestre era justamente a sua capacidade de ensinar aos seus discípulos os mandamentos, distinguindo-os entre maiores e menores; o próprio Jesus também faz referência a isso quando afirma: “Aquele, portanto, que violar um só destes menores mandamentos e ensinar os homens a fazerem o mesmo, será considerado o menor no Reino dos Céus” (Mt 5,19).

Contudo, o problema não era reconhecer a multiplicidade dos Mandamentos, que certamente do ponto de vista didático poderia ser uma ajuda. O grande perigo era a postura relativista a ponto de manipular, em benefício próprio, a compreensão de alguns mandamentos em detrimento de outros. O próprio Jesus denuncia esta tendência relativista: “Deus disse: Honra ao teu pai e à mãe… Vós, porém, dizeis: Aquele que disser ao pai ou à mãe: ‘Aquilo que de mim poderias receber foi consagrado a Deus, esse não está obrigado a honrar pai ou mãe’. E assim invalidastes a Palavra de Deus por causa da vossa tradição. Hipócritas!” (Mt 15,4s).

Além dessa tendência relativista, havia aqueles mestres que, apegados à letra, absolutizavam cada um dos mandamentos, rompendo a relação intrínseca que havia entre eles. Ilustram bem tal tendência os grandes debates de Jesus em relação ao Mandamento do Sábado. Os mestres da Lei interpretavam o dia consagrado ao Senhor (Shabat) como um cessar absoluto de atividades, o que seria impossível, esquecendo que o Sábado era fundamentalmente o dia de fazer memória dos grandes feitos do Senhor (a criação, o êxodo). Na perspectiva bíblica, o “descanso sabático” não era apenas um não fazer nada, caindo numa espécie de ócio espiritual, mas o Sábado era o dia por excelência de contemplar tudo aquilo que o Senhor fizera. Contemplar a obra de Deus para comprometer-se em defendê-la, preservá-la, impedir a sua destruição, que inicia quando se rompe o vínculo que há entre ela e o seu Criador.

Quando Jesus cura no sábado não está infringindo um mandamento, mas, pelo contrário, evidenciando a sua missão como o Filho do Deus que criou tudo perfeito, assim como encontramos o refrão ao final de cada dia no relato da criação: “E Deus viu que isso era bom!”. No entanto, a Obra de Deus chega ao seu clímax na criação do ser humano, no sexto dia, daí a exclamação mais enfática: “E era muito bom” (Gn 1,31). Portanto, essas curas representavam a intervenção de Deus para recuperar o que Ele fez no princípio; por isso, o povo testemunha o operar de Jesus e não tem dificuldade de reconhecer que ele age coerentemente com o modo de fazer do seu Pai. Ele mesmo declara, depois de ter curado um paralítico em dia de sábado: “Meu Pai trabalha sempre e eu também trabalho” (Jo 5,17).

O povo diante das obras de Jesus faz ecoar o refrão inspirado naquele dos dias da criação: “Ele tem feito tudo bem; faz os surdos ouvirem e os mudos falarem” (Mc 7,37). Fazer os “surdos ouvirem” é recuperar a condição fundamental para conhecer as obras de Deus desde a origem, pois é ouvir a sua Palavra que comunica o seu agir: “O que nós ouvimos e conhecemos, o que nos contaram nossos pais… Os louvores de Javé e seu poder” (Sl 78,3s). A solene introdução aos Mandamentos é justamente o convite a ouvir: “Shema Israel” (Dt 5,1). É impossível, por sua vez, ter uma compreensão e vivência coerentes dos Mandamentos se os isolarmos da obra de Deus.

Jesus não reduziu em nada a totalidade da Lei de Deus ao afirmar a centralidade dos dois mandamentos, mas recuperou a chave de interpretação de toda a Escritura: “Toda a lei e os profetas dependem desses dois mandamentos”.

Se amar é fazer o bem a alguém, como poderíamos amar a Deus, uma vez que Ele já é o Bem supremo? Então, se não somos capazes de fazer-lhe o bem, amá-lo será acolher o bem que Ele nos faz e, consequentemente, ser testemunhas disso. O maior bem que Ele nos faz é nos ter criado à sua imagem e semelhança. Por conseguinte, amar o semelhante nada mais é do que a concretização do amor a Deus que nos oferece esse grande bem. Sem o amor a Deus como fundamento do amor ao próximo, poderemos cair num narcisismo onde projetamos no outro a nossa imagem e semelhança como razão para amá-lo, fazendo do outro não um semelhante, mas uma simples cópia, adaptada psicologicamente. Porém, o mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” é o grande desafio de reconhecer que tanto eu quanto ele fomos criados à imagem e semelhança de Deus, eis o motivo porque somos iguais. Amamos o outro não porque o reconhecemos uma cópia nossa, mas porque vemos nele o que somos, isto é, imagem e semelhança de Deus. Portanto, reconhecendo e assumindo essa verdade, amaremos de modo verdadeiro e completo, sem relativismos ou absolutismos que dividem e separam, e transformam amor em egoísmo cuja lei é uma só: “Vive assim, e morrerás!

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ. Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE. Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana.