(Evangelho – Mt 17,1-9)
O seu rosto brilhou como o sol.
Naquele tempo:
1Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão,
e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha.
2E foi transfigurado diante deles;
o seu rosto brilhou como o sol
e as suas roupas ficaram brancas como a luz.
3Nisto apareceram-lhes Moisés e Elias,
conversando com Jesus.
4Então Pedro tomou a palavra e disse:
‘Senhor, é bom ficarmos aqui.
Se queres, vou fazer aqui três tendas:
uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias.’
5Pedro ainda estava falando,
quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra.
E da nuvem uma voz dizia:
‘Este é o meu Filho amado,
no qual eu pus todo meu agrado.
Escutai-o!’
6Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito
assustados e caíram com o rosto em terra.
7Jesus se aproximou, tocou neles e disse:
‘Levantai-vos, e não tenhais medo.’
8Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais
ninguém, a não ser somente Jesus.
9Quando desciam da montanha, Jesus ordenou-lhes:
‘Não conteis a ninguém esta visão até que o
Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos.’
(Por: Pe. André Vital Félix da Silva, SCJ)
O episódio da Transfiguração do Senhor, neste Segundo Domingo da Quaresma, está intimamente relacionado com a narração das tentações de Jesus que meditamos oito dias atrás; pois dois elementos fundamentais estão presentes em ambas as situações. Por um lado, a afirmação de que Jesus é o Filho de Deus, mas ao mesmo tempo a tentação (Diabo e Pedro) de impedi-lo de cumprir com coerência e fidelidade a sua missão d Servo Sofredor.
A versão da Transfiguração que encontramos no lecionário dominical, por questão de adaptação à leitura litúrgica, substitui: “E seis dias depois” (grego: Kai meth’ hemeras hex) por “Naquele tempo”. Porém, a expressão original nos dá uma chave de leitura importantíssima para captarmos bem o significado teológico da Transfiguração tanto no contexto do evangelho de Mateus quanto à luz Antigo Testamento. Em primeiro lugar, os vários elementos que aparecem na cena da transfiguração fazem referência a Êxodo 24,13-16, quando a expressão “seis dias” indica o tempo no qual Moisés permaneceu na montanha de Deus, sob a nuvem, a fim de receber as tábuas da Lei; no 7º dia Deus chamou Moisés do meio da nuvem e manifestou-lhe a sua glória como um fogo consumidor. Ademais, encontramos também uma referência ao profeta Elias que, por sua vez, também na montanha de Deus, fez a experiência do encontro com o Senhor (1Rs 19,8-18), cujas manifestações que antecederam a sua presença levaram o profeta a cobrir o seu roso com o manto.
No evangelho, quando lemos a expressão “Seis dias depois”, naturalmente nos vem a pergunta: “De quê?” (O que aconteceu antes?). Portanto, é bom ter presentes estes últimos episódios: a confissão de Pedro (Mt 16,13-20), o anúncio da paixão e a tentação de Pedro (Mt 16,21-23), as condições para seguir Jesus (Mt 16,24-26) e, por fim, o próprio anúncio da Transfiguração: “Em verdade vos digo que alguns dos que aqui estão não provarão a morte até que vejam o Filho do Homem vindo em seu Reino” (Mt 16,28). Por isso, daqueles que ali estavam presentes, “Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João”. Serão eles as testemunhas de que o Reino chegou com Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, aquele que vai morrer e, ao terceiro dia, ressurgirá.
Tanto no centro do relato dos acontecimentos anteriormente mencionados quanto na narração da Transfiguração encontramos a tentação de Pedro, que procura impedir Jesus de cumprir sua missão: “Pedro começou a repreendê-lo: Deus não te permita, Senhor” (Mt 16,22), “Senhor, é bom estarmos aqui” (Mt 17,4); em outras palavras, Pedro estava querendo dissuadir Jesus para que permanecesse no monte da Glória, sob a proteção de uma tenda e, assim, não teria que descer de lá para subir o monte da Cruz. Em ambos os casos, Pedro tenta Jesus para que abandone o caminho do sofrimento, da cruz, assim como fez o Satanás no deserto quando sugeriu que Jesus matasse a sua fome com um toque mágico, exigisse a proteção de Deus sem obediência e alcançasse o poder e a riqueza renegando a sua filiação divina.
Assim como Satanás propôs a Jesus três proteções ilusórias (material: o pão; divina: os anjos; humana: o poder e a riqueza), Pedro quer erguer três tendas para proteger os três personagens importantes da cena. Contudo, essa aparente benevolência de Pedro acarretaria um grande dano: impedir que as Escrituras, representadas em Moisés e Elias, se realizassem plenamente com a morte e ressurreição de Jesus; é mais uma tentativa de afastar Jesus da cruz. O objetivo é claro: ao construir uma tenda para cada um, Pedro isolará os três e impedirá o diálogo (Lucas explicita que a conversa era sobre a morte de Jesus em Jerusalém: Lc 9,30-31) entre Moisés (Lei), Elias (Profecia) e Jesus (Palavra Encarnada), que já tinha afirmado: “Não vim para revogar a Lei e os Profetas, mas para dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17). Jesus é aquele que realiza o autêntico diálogo entre o Antigo Testamento (Moisés e Elias) e o Novo Testamento (Pedro, Tiago e João). É o próprio Pai, cuja palavra se faz ouvir nas Escrituras, que declara ser o seu Filho amado, o único intérprete fiel da Lei e dos Profetas.
Assim como no deserto, Jesus venceu as tentações do diabo com a proclamação da palavra do seu Pai (“Não só de pão viverá o homem…” Não tentarás o Senhor teu Deus”, “Ao Senhor teu Deus adorarás…”), agora diante das tentações de Pedro (e dos discípulos) é a Palavra do Pai mais uma vez que se faz ouvir: “Este é o meu filho amado, em quem me comprazo, ouvi-o”. Assim como as tentações foram vencidas pela obediência de Jesus à Palavra de Deus, agora os discípulos são instruídos para que também aprendam a vencê-las. Satanás vencido, recuou (“O diabo o deixou”), os discípulos, por sua vez, ouvindo a voz do céu: “Muito assustados, caíram com o rosto no chão”, portanto, foram derrotados nas suas tentações, mas Jesus os ergue, fazendo-os participar antecipadamente da sua ressurreição pois dirige-lhes as palavras próprias do ressuscitado: “Não tenhais medo” (Mt 28,10).
Quaresma é tempo de renovar o nosso compromisso de seguir os passos de Jesus que exige de nós a coragem de desamarmos as nossas tendas (comodismo, egoísmo, descompromisso etc.). Armar a tenda no monte da transfiguração pode ser prazeroso, mas nos impede de prosseguir o caminho que leva à verdadeira vitória, que não se alcança senão subindo o monte da cruz. Mais uma vez é a Palavra de Deus a nos guiar e fortalecer na luta contra as tentações das inúmeras tendas, que ao longo do caminho encontramos.
Pe. André Vital Félix da Silva, SCJ. Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Professor nos Seminários de Campina Grande-PB, Caruaru-PE e João Pessoa-PB. Membro da Comissão Teológica Dehoniana Continental – América Latina (CTDC-AL).