(Evangelho – Mt 4,1-11)

Jesus jejuou durante quarenta dias e foi tentado.

Naquele tempo:
1o Espírito conduziu Jesus ao deserto,
para ser tentado pelo diabo.
2Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites,
e, depois disso, teve fome.
3Então, o tentador aproximou-se e disse a Jesus:
‘Se és Filho de Deus,
manda que estas pedras se transformem em pães!’
4Mas Jesus respondeu: ‘Está escrito:
‘Não só de pão vive o homem,
mas de toda palavra que sai da boca de Deus’.’
5Então o diabo levou Jesus à Cidade Santa,
colocou-o sobre a parte mais alta do Templo,
6e lhe disse: ‘Se és Filho de Deus,
lança-te daqui abaixo!
Porque está escrito:
‘Deus dará ordens aos seus anjos a teu respeito,
e eles te levarão nas mãos,
para que não tropeces em alguma pedra’.’
7Jesus lhe respondeu: ‘Também está escrito:
‘Não tentarás o Senhor teu Deus!”
8Novamente, o diabo levou Jesus para um monte
muito alto.
Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e sua glória,
9e lhe disse: ‘Eu te darei tudo isso,
se te ajoelhares diante de mim, para me adorar.’
10Jesus lhe disse: ‘Vai-te embora, Satanás,
porque está escrito:
‘Adorarás ao Senhor teu Deus
e somente a ele prestarás culto.’
11Então o diabo o deixou.
E os anjos se aproximaram e serviram a Jesus.

 

pedra1

                                                            (Por: Pe. André Vital Félix da Silva, SCJ)

Iniciamos a nossa caminhada quaresmal diante de duas cenas bíblicas aparentemente opostas, mas ao mesmo tempo intimamente relacionadas. Por um lado, o velho Adão no centro do paraíso (Éden em hebraico: jardim das delícias), tendo ao seu dispor uma variedade de frutos para a sua alimentação, com a única restrição de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal (1ª Leitura); do outro lado, temos o novo Adão, em pleno deserto, sem nada para comer e beber, peregrinando em busca do homem perdido, isto é, o Adão desobediente que fora expulso do paraíso e que se encontra ali no deserto, abandonado, incapaz de reencontrar o caminho de volta. Por isso, o Filho de Deus, assumindo a condição desse homem, vai ao seu encontro a fim de fazê-lo reencontrar a estrada rumo ao paraíso, à vida plena (2ª Leitura).

Nesse episódio das tentações de Jesus retoma-se a perspectiva do Antigo Testamento do compromisso de Deus de reconduzir seu povo, que se encontra no deserto, para a terra prometida. Moisés, no seu cântico (Dt 32) afirma: “Quando o Altíssimo repartiu as nações, quando espalhava os filhos de Adão, ele fixou fronteiras para os povos… Mas a parte do Senhor foi o seu povo… Ele o achou numa terra deserta, num vazio solitário e ululante”, portanto, o deserto é o lugar do encontro por excelência de Deus com o seu povo. Contudo, aquele que provocou a expulsão do paraíso, agora faz de tudo para que esse homem não saia do deserto, por isso se antepõe àquele que pode tirá-lo de lá. Satanás em hebraico significa “aquele que se coloca diante para impedir a passagem”, é o adversário, o acusador. As tentações propostas pelo diabo representam as tentativas de impedir que o Filho de Deus reconduza o homem, que se encontra no deserto, de volta ao paraíso, pois mantê-lo no deserto é garantir a sua morte.

Se o homem foi expulso do paraíso por causa de sua desobediência, só há um caminho de volta: a obediência a Deus. Se a antiga serpente convenceu o homem a desobedecer a Deus incitando-o a comer do fruto proibido, agora o Filho de Deus reabre a estrada através de um jejum de 40 dias a fim de alimentar-se apenas da Palavra que sai da boca de Deus, pois só assim não se deixará seduzir por nenhuma outra palavra enganadora como fora aquela da serpente a Eva.

anjos

Sutilmente o tentador quer convencer Jesus a endurecer o coração (fechar os ouvidos à voz do Pai), levando-o à desobediência e à infidelidade. Uma linguagem simbólica muito recorrente na Bíblia para indicar as tentações do povo no deserto é justamente “o coração de pedra”, como adverte o salmista: “Não endureçais os vossos corações como no deserto” (Sl 95,8). A missão de Jesus é justamente o contrário, é transformar os corações de pedra, desobedientes, em coração de carne. Ezequiel já profetizara que o próprio Deus iria transformar o coração de pedra do seu povo a fim de torná-lo obediente à sua Palavra, e isso resultaria na certeza de habitar a terra prometida, ou seja, sair do deserto, pois de uma terra desolada e deserta o Senhor fará como o Jardim do Éden (Ez 34,26-38).

As investidas do Diabo visam dissuadir Jesus de sua missão, ou seja, primeiramente, ao invés de transformar os corações de pedra em coração de carne, o tentador sugere que Jesus transforme as pedras em pão, isto é, uma vez que está com fome, use o seu poder de Filho de Deus em benefício próprio e não na realização da vontade de Deus.

Em seguida, o tentador procura obstruir o caminho exodal de Jesus propondo-lhe abandonar a estrada por onde devia passar e tomar atalhos, caminhos mais fáceis: “Atira-te daqui para baixo… os anjos te tomarão pela mão”. Porém, Jesus sabe que o caminho que conduzirá a humanidade para fora do deserto, que leva ao paraíso, não conhece nem atalhos nem saídas de emergência, mas é a estrada da cruz, é a porta estreita que leva inevitavelmente ao calvário.

JC super

A astúcia da antiga serpente, a sua característica fundamental, alcança seu ponto mais alto quando propõe: “Tudo isto te darei, se prostrado, me adorares”. O Satanás não apenas tenta obstruir o caminho de volta ao paraíso, mas se coloca como meta final desse caminho. É a mais ousada tentativa de impedir que Jesus realize a sua missão. Mais do que dificultar a estrada, o Diabo se coloca como ponto final do percurso, pois propõe a Jesus que o reconheça como o seu Deus (e Pai). Diante da tentação de tomar uma estrada errada, reza o salmista: “Ensinai-me, ó Senhor, vossos caminhos e mostrai-me a estrada certa! Por causa do inimigo, protegei-me, não me entregueis a seus desejos!” (Sl 27,11-12).

Todo ser humano na sua jornada terrena faz a experiência de sentir-se perdido, de encontrar-se no deserto sem rumo. A quaresma nos propõe um encontro com o Senhor que vem ao nosso deserto para desobstruir o caminho de libertação. Jesus, vencedor das tentações, ajuda-nos também a vencê-las, quando nos deixamos guiar pela Palavra de Deus que ilumina nossos passos e nos encoraja na luta contra as três grandes tentações de todo ser humano, como nos diz muito bem São Gregório de Nazianzo (Sermão XL, 10): o diabo quis convencer Jesus pela necessidade (fome), pela vaidade (privilégio de ser Filho de Deus), pela ambição (possuir todos os reinos). Essas continuam sendo também as nossas tentações, são os grandes empecilhos que obstruem o nosso caminho de crescimento (rumo à plenitude de vida). Reduzindo nossa existência à satisfação de nossas necessidades, permaneceremos fechados na nossa dimensão material, imediatista, cujo horizonte é estreito e medíocre: não enxergamos mais do que o que comer, beber, vestir. Apegados à nossa vaidade, viveremos estagnados na superficialidade da nossa existência, nas aparências sem raízes profundas que possibilitem nosso crescimento em todas as dimensões. Escravizados pela ambição, serviremos apenas aos ídolos que garantam o nosso bem-estar material, ainda que isso não passe de uma ilusão. Todos nós somos suscetíveis às tentações, porém se nos deixarmos conduzir por aquele que as venceu e vai à nossa frente desobstruindo o caminho, é possível também vencê-las.

Fim2

 

padre-andrePe. André Vital Félix da Silva, SCJ. Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Professor nos Seminários de Campina Grande-PB, Caruaru-PE e João Pessoa-PB. Membro da Comissão Teológica Dehoniana Continental – América Latina (CTDC-AL).