Missa da trasladação dos restos mortais de Dom Helder Camara, Dom Lamartine e Padre Antônio Henrique
(Leituras: 2Ts 1,1-5.11b-12 e Mt 23,13-22)

Queridos irmãos e irmãs,

“Assim nos gloriamos nas Igrejas de Deus por causa da vossa perseverança e da vossa fé em todas as perseguições e sofrimentos que suportais. Estes constituem um sinal do justo juízo de Deus, pois servem para serdes julgados dignos do Reino”.

Palavras de São Paulo, em sua segunda carta aos tessalonicenses que acabamos de escutar. O apóstolo rende graças a Deus pela perseverança diante das perseguições e sofrimentos enfrentados pela comunidade de Tessalônica, ameaçada de perder o impulso que torna o cristianismo dinâmico e causador de profundas transformações espirituais e sociais. A esperança é que dá a tônica de toda a carta, e é apresentada como a virtude que desacomoda e incentiva o espírito de luta, na certeza da vitória. Sem dúvida, foram também esses os sentimentos presentes na vida e nas atitudes dos nossos irmãos Dom Helder Camara, nosso inesquecível arcebispo, Dom Lamartine, seu indispensável e muito querido bispo auxiliar e arcebispo eleito de Maceió-AL, e o Padre Antônio Henrique que, aos 28 anos de idade e 3 de sacerdócio foi vítima da repressão e intolerância.

O que é ser padre para Dom Helder? Foi a pergunta, publicada no livro ‘Dom Helder, misticismo e santidade’, que lhe fez o autor Marcos Castro, em 1978. Assim respondeu o Dom: “Como eu agradeço o fato de Deus me chamar para ficar a serviço d’Ele, servindo ao próximo, servindo aos meus irmãos! A razão de ser do padre é dar-se, é doar-se, é servir. A essência do padre é isso. Claro que antes de tudo é servir a Deus. Mas a melhor maneira de servir a Deus é servir ao próximo. O que é que se pode fazer para tornar Deus mais Deus? Aos irmãos, podermos realmente ajudar. Sobretudo nos nossos tempos, quando há tanta injustiça, tanta opressão. O amor ao próximo, a grande caridade – caridade é amor – é ajudar a fazer justiça.” E concluiu: “Depois, por uma nova escolha de Deus, vem uma nova graça, sem nenhum merecimento. É a escolha para o episcopado, que é o sacerdócio ministerial na sua plenitude. Não se trata absolutamente de mais prestígio, mas da obrigação de servir de modo ainda mais absoluto, mais total. É a doação total. É Deus pedindo mais a quem mais graças Ele deu, pois Deus ama igualmente a todos os seus filhos, mas não foi tão burocrata a ponto de dividir seus dons de maneira rigorosa e monotonamente igual. A quem – sem nenhum mérito do que recebe, mas por exclusiva escolha Sua. Ele deu mais, desse também cobrará mais.”

Evangelho significa boa notícia e cada vez que, na liturgia, é proclamado, no final da leitura o diácono ou presbítero que o lê, exclama: “Palavra da salvação”. Entretanto, no texto que escutamos, não é fácil descobrir que essas palavras de Jesus são de salvação. Elas têm um tom de ameaça e denúncia contra os chefes da religião do seu tempo. Entretanto, mesmo se não são sempre palavras agradáveis de ouvir, são boas notícias e são de salvação porque são de defesa da verdade, da justiça e da vida, como princípios básicos do projeto divino no mundo.

Por trás desse discurso de Jesus contra os fariseus e mestres da lei está o conflito que, durante toda a vida, opôs Jesus a uma religião de casuísticas e de leis, mais do que de amor e solidariedade. No entanto, essas palavras de Jesus foram anunciadas pelo evangelista para orientar os cristãos das primeiras comunidades que, nas últimas décadas do primeiro século, tinham conflitos com os chefes das sinagogas judaicas, como os antigos profetas de Israel tinham com os sacerdotes do templo de Jerusalém. Conforme Mateus, exatamente como os profetas Amós e Isaías, Jesus também pronuncia sete “ais”. Esta expressão: “ai de vocês” é mais de lamento e pena do que de condenação. Jesus não condena. Ele lamenta e ao lamentar, denuncia o pecado e revela o mal que virá como consequência do pecado. Não como castigo direto de Deus e sim como consequência desse tipo de caminho que a religião dos fariseus e escribas tomou.

O que Jesus contesta é a hipocrisia e o fingimento (sob o pretexto de orar, vocês exploram as viúvas) e a separação entre a doutrina e a prática da vida: Ele critica as leis cultuais e os costumes dos fariseus que tornavam o culto e as regras litúrgicas pesadas para o povo. Em todo caminho espiritual, o fundamental é a justiça e a misericórdia e não esses detalhes dos votos ligados aos sacrifícios no templo. Até hoje, o risco de uma espiritualidade que não liga fé e vida, contemplação e compromisso com a justiça continua. Hoje, nós lembramos a memória de Dom Hélder Câmara que justamente nos deixou como herança essa preocupação que deu direção a toda a sua vida: ligar a fé com a vida, a adoração a Deus com a justiça e a solidariedade com os pequeninos. Esse foi também o motivo pelo qual o padre Antônio Henrique foi assassinado. Na pastoral da juventude que ele coordenava, ele insistia nessa profecia da justiça social e da coerência entre o que pregamos e o que vivemos. Também a ação pastoral de Dom Lamartine sempre foi nessa mesma linha: organizar bem a pastoral arquidiocesana na orientação clara dessa linha de Dom Helder.

Sem dúvida, para nós é um sinal de Deus que no aniversário da páscoa de Dom Helder, possamos ver a Comissão Estadual da Verdade, recém- instalada, assumir como compromisso primeiro elucidar esse crime que nos levou o padre Henrique, assim como vitimou a tantos irmãos e irmãs nossos. Somos convocados a ficar ligados a essa comissão, não para se preocupar em saber tudo ou desvendar os mistérios que são objetivos próprios da comissão, mas para contribuir, da maneira como podemos, e, sobretudo assumir a causa da justiça e da verdade pela qual o padre Henrique deu a vida como mártir da fé e do reino de Deus. É importante que enquanto a comissão investiga o que realmente ocorreu naquela madrugada de 27 para 28 de maio de 1969, nós todos continuamos o ministério e a missão de ser testemunhas do amor de Deus.

Mesmo se hoje vivemos em uma sociedade e uma realidade eclesial diferentes do tempo em que Dom Hélder, Dom Lamartine e padre Henrique viveram, é preciso que do nosso modo e de forma adequada ao nosso tempo prossigamos a profecia do “dom da paz”, “irmão dos pobres e meu irmão”, como afirmou o beato João Paulo II e, estejamos à altura de podermos ser vistos como herdeiros e continuadores do testemunho de Dom Lamartine, pela sua fidelidade e capacidade de articular e padre Henrique, pela sua coragem e vigor missionário, especialmente voltado para os jovens, quando o Brasil se prepara para a Jornada Mundial da Juventude de 2013, no Rio de Janeiro.

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

Dom Antônio Fernando Saburido, OSB
Arcebispo de Olinda e Recife