“Nós, porém, nos gloriamos na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, nossa salvação, nossa vida e nossa ressurreição…” (Gal. VI, 14).

Essa antífona que dá o tom à nossa celebração da Páscoa nos convida a contemplarmos o mistério pascal em sua integridade. A ressurreição de Jesus não é uma vida depois da morte e sim a vida nova para além da morte, como vitória da Cruz. Até hoje, para nós é difícil compreender o significado mais profundo da Cruz de Jesus. Sabemos que sua condenação à morte foi a reação do mundo à sua maneira de viver, de agir e falar do Reino de Deus. Jesus contestou o Pretório (o poder político) e o Sinédrio (as autoridades religiosas) do seu tempo que se uniram e o condenaram. Jesus não cedeu e assumiu a morte que veio ao seu encontro. O evangelho de João explica isso na leitura que escutamos na Missa da Santa Ceia: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”, isso é, foi até o ponto final onde o amor pode ir (Jo 13, 1). Na Cruz, Jesus revela um rosto de Deus que se manifesta na paixão e na dor dos povos crucificados.

Na Carta aos filipenses, São Paulo critica os cristãos que se apegavam aos costumes religiosos que não os ligavam a uma vida de solidariedade. Alguns se gloriavam de cumprir os mandamentos da lei mosaica, mas se fechavam em suas Igrejas. Paulo chega a chamá-los de “inimigos da cruz de Cristo” (Fl 3, 18). Diz que o seu deus é o ventre. Eles baseavam a sua relação com Deus em preceitos sobre alimentos. Isso se pode comer, isso não se pode. A esse respeito, Paulo diz: “o reino de Deus não é questão de comida ou de bebida. É questão de justiça, paz e alegria, no Espírito Santo” (Rm 14, 17). Quando nos deixamos aprisionar por uma religião da lei ou pelas armadilhas do poder e, ainda, separamos a fé, de um lado, e o compromisso social de transformar esse mundo, (a questão da justiça) do outro, não testemunhamos a misericórdia do Pai que Jesus revelou na Cruz.

O Papa Francisco tem insistido muito na necessária relação entre a celebração da fé e uma vida solidária. Isso se dá se nos deixarmos impregnar totalmente pela misericórdia de Deus que cada Páscoa celebra e atualiza. Para quem mora nessa região, não é difícil sentir “as entranhas se moverem de compaixão”, como o evangelho diz que aconteceu com Jesus. São imensas e urgentes as necessidades de emprego, saúde, educação e moradia da maioria pobre de nossa população, sem falar na crise econômica, ética e política que assola nosso país. As preocupações com o poder e as riquezas superam a capacidade de dialogar e priorizar o melhor para o nosso povo, especialmente os mais pobres. Na recente celebração do Domingo de Ramos, tive oportunidade de afirmar que temos vivido dias de tormento, com doenças graves e sofrimento entre as pessoas. Por outro lado, a briga por altas posições e poder tem levado muitos a perder a razão. É tempo de aprendermos com o exemplo de amor deixado por Cristo, para colhermos frutos de paz e vitória. Nessa Campanha da Fraternidade Ecumênica, constatamos que, no território da nossa Arquidiocese, uma grande faixa da população ainda não tem acesso aos serviços de saneamento básico. Precisamos assumir, com mais empenho, a dimensão social de uma ação comunitária solidária que produza frutos. Infelizmente, mesmo 50 anos depois de concluído o Concílio Vaticano II, reconhecemos que iniciativas como a Campanha da Fraternidade Ecumênica e outras campanhas sociais não conseguem atingir o âmago da nossa fé. Parece que ainda vivemos essas questões sociais como uma espécie de apêndice ou acréscimo tangencial, que não toca no próprio núcleo da fé. Sem dúvida, para mudar isso, é preciso uma profunda conversão da nossa própria mentalidade religiosa e da cultura do povo. Já em 1966, portanto há 50 anos, em uma festa de Corpus Christi, Dom Helder Câmara afirmava: “Nós reconhecemos e adoramos Jesus na hóstia consagrada. Mas, a Eucaristia é um sacramento da realidade. Reconhecê-lo no sacramento deveria nos levar a reconhecê-lo nas pessoas dos pobres e a servi-lo no esforço de transformar essa sociedade desumana”. Hoje, sem dúvida, Dom Helder acrescentaria a presença de Jesus na natureza, na terra, nossa casa comum.

Desejo a vocês e a todos os nossos arquidiocesanos que se encham da misericórdia divina e vivam na solidariedade social a Páscoa que celebramos. No século IV, São João Crisóstomo, bispo de Constantinopla, dizia: “O Cristo ressuscitado vem fazer de nossas vidas, mesmo no meio das lutas e das dores do dia a dia, uma festa contínua”. É assim que desejo a todos/as uma feliz e renovadora celebração da Páscoa.

 

Dom Antônio Fernando Saburido
Arcebispo de Olinda e Recife

 

Recife, 20 de março de 2016.