Da galheta cheia

uma só gota

foi chamada a participar

da Oferenda Divina.

Por que aquela e não outra?

Não vemos nada!

Não sabemos nada!

Comoveu-me a placidez

da água restante

que logo a seguir

lavou,

humilde e feliz,

as minhas mãos de pecador!

(Dom Hélder Câmara)

            Na preparação das oferendas, durante a Santa Missa, uma gota d’água é convidada a unir-se ao vinho. “Por que aquela e não outra?”, pergunta Dom Hélder. Mistérios imperscrutáveis de Deus. É assim a realidade do insondável caminho da encarnação. Deus se apequena, assume o particular, o específico: um povo, uma cultura, um tempo, uma língua, uma família, um gênero, um jeito de sorrir, um sotaque, alguns amigos… Por que esta gota de humanidade e não outras? Simplesmente porque o que é assumido é ponte, é caminho, sinal sacramental, são primícias de uma realidade maior, toda perpassada pelo divino. Assumindo o particular, Jesus assume a Criação, com todas as vicissitudes.

            E o sacerdote reza em silêncio: “Pelo mistério desta água e deste vinho, possamos participar da divindade do vosso Filho, que se dignou assumir a nossa humanidade”. No escâmbio de dons entre o céu e a terra, tomamos da Criação e oferecemos ao Senhor. Em troca, Ele se nos entrega, em total oblação. Deus se faz humano, para que o ser humano se faça Deus, por participação. Aquela gota de nossa humanidade é de tal forma transfigurada pelo dom do sangue derramado na cruz, que se faz redimida, redenta, salva, diáfana, translúcida e divina.

            Dom Hélder continua: “Comoveu-me a placidez da água restante que logo a seguir lavou, humilde e feliz, as minhas mãos de pecador!” Também a mim, encanta-me a serenidade generosa da água restante, na galheta, que se contenta em lavar minha pobre insuficiência. Semelhante à missão de João Batista: ele não é a Luz, mas a lamparina; ele não é a Palavra, mas a voz emprestada; ele não é o Esposo, mas o amigo dele. E grita: “Que Ele cresça e que eu diminua”. Isso é Natal: tornar-nos mediação. É tempo de permitir que Ele seja, que o pequeno Menino da manjedoura seja em nós! Ele nos assume para que nós o assumamos: vidas transfiguradas; grupos familiares que reencontram o equilíbrio; pais e filhos que se perdoam; nova chance para o diálogo e a paz entre os povos; desigualdades sociais mitigadas; natureza que redescobre a harmonia; pessoas que renascem na fé e na esperança. Feliz Natal!

Dom Paulo Jackson

Arcebispo de Olinda e Recife

Vice-presidente da CNBB